terça-feira, 31 de março de 2015

Eu me amo

Nunca fui uma criança tipo menina linda-princesa-vai dar trabalho com namoradinhos. Eu era bicho do mato, calada estava sempre observando tudo, a poeira na fresta de sol, a última gota de água da pia, as luzes e sombras noturnas entrando pelas frestas da janela e percorrendo o teto, as formigas carregando imensidões, os galhos secos desfigurados, as figuras nos nós da porta de madeira, o fogo na fogueira, a fumaça na cheleira, as pessoas na correria do dia, as pessoas...no sofá, no metrô, na padaria. Eu olhava fixa e desconfiadamente enquanto teciam algum comentário sobre mim, como se eu não estivesse presente, apesar de me encararem dizendo: - que pequenininha, fofinha, é tímida?, gosta de desenhar né?, o gato comeu sua língua...e nesse ponto eu soltava um corajoso: -Comeu! Que fofa, diziam com riso amarelado. 

Nunca fui uma criança tipo menina linda-princesa-meu deus como é simpática-vai dar trabalho com namoradinhos. Eu estava sempre à escuta, atenta a tudo que vivia ao meu redor e às pessoas, eu fechava os olhos e permanecia imóvel, por horas, por minutos, só para ouvir os sons que o mundo fazia enquanto eu dormia, era como tentar flagrar o papai noel na calada da noite, mas eu queria flagrar o universo inteiro e as pessoas. O que acontece enquanto eu durmo? O que fazem os bichos, a lua continua no céu? Os peixes dormem também? O mundo fica pausado? E o que dizem as pessoas? Eu sempre tive grande interesse pelas pessoas que as pessoas escondiam dos outros (de mim no caso, de todas as crianças, talvez).

Nunca fui uma criança tipo que linda-princesa-menininha mais educada do mundo. Eu era quieta porque achava tudo muito estranho sempre, achava as pessoas incoerentes, os casais incoerentes, as famílias incoerentes, eu era quieta porque queria desvendar o grande mistério das mentiras que as pessoas contavam enquanto eu estava acordada, não, eu queria era flagrar o grande mistério das verdades que as pessoas contam enquanto o resto do mundo dorme, eu era quieta porque em silêncio podia ouvir meu coração.

Hoje sou uma mulher que nunca foi do tipo exuberante-princesa-modelo padrão-meu deus morri e o grande mistério do universo das pessoas que as pessoas não querem ser e as mentiras que elas contam para si, não me arrebatou, continuo sendo uma criança tipo doida-meio moleque-no mundo da lua que gosta do silêncio que permite ouvir o coração, porque isso me faz conseguir aceitar as minhas verdades, ainda que elas sejam o avesso do padrão comercial, a sombra da massa, essa sou eu e eu me amo.


Nina Rocha
terça-feira, 31 de março de 2015.


sexta-feira, 6 de março de 2015

Meia noite, meio dia: non-sense como a vida sabe ser.

Dormi tarde, como de costume. 
Sonhei com cães fofinhos, saudades dos meus.
Acordei medianamente cedo, do jeito que eu gosto.
Meditei, sem pressa alguma.
Bebi meio copo de água gelada com um limão espremido, eu gosto do azedo.
Tomei um banho estilo tempos de escassez, cinco minutos.
Arrumei a cama, sem preguiça, já tive, mas agora arrumar a cama é o signo de que acordei de vez.
Preparei uma tapioca e piquei meio mamão, café da manhã, no meio da manhã.
Lavei roupa estilo tempos de escassez, roupas do último mês lavadas de uma só vez.
Li um mapa astral que prioriza o amor e o sexo, Vênus em leão e Marte em gêmeos, fez muito sentido.
Escrevi mais um haicai/haikai brasileiro, acordei com vontade de escrever, sim Guilherme de Almeida e etc, blá blá blá, vou escrevendo.
Almocei com minha vó, a gordinha, o momento em que eu posso desligar a TV e a gente consegue conversar.
As trovoadas soaram intensas lá fora, veio a tempestade do verão, que está chegando ao fim.
Fiz café, dividi com o pretinho velho e bebi o meu com um doce de amendoim que ganhamos da melhor vizinha dos últimos tempos.
Lavei a louça, retirei os lixos, arrumei a mesa, preparei os fones, os livros, o caderno de anotações.
Fiz um telefonema urgente pensando nas respostas de Job que ainda não vieram, meu único motivo de pequena ansiedade ultimamente, saudável, que me faz tirar a bunda da zona confortável do sofá.
Enquanto escrevo a vizinha traz dois caquis enormes e maravilhosos pro lanche da tarde, essa vizinha é o avesso da modernidade, adoro isso.
Pausa...conversando com a vó sobre pés de café do quintal da antiga casa da Lindoro.
Ouça-me bem amor, preste atenção, o mundo é um moinho, vai triturar teus sonhos tão mesquinhos, vai reduzir as ilusões a pó...
Ouço Cazuza nos fones, com mais atenção, lembro que quando criança eu amava ouvi-lo, entendia tudo ao pé da letra e hoje percebo que é mesmo isso, Cazuza não usava metáforas fofinhas, é navalha na carne mesmo, o eu criança era estranho, penso.
A tarde continua, a escrita continua, lembro dos livros que estou por organizar para edição, nas letras de samba que estou por ouvir a melodia, nas cenas de Clown que estou por transformar em número, nos jobs para os quais estou a esperar resposta, nos jobs já confirmados, no treino de hoje cancelado pela chuva ou pela necessidade de escrever, estudar e fazer alguns contatos pra levantar novos jobs, pra adiantar os novos projetos, e você? Em que está pensando?
Penso nas pessoas desvendando meus passos, nesse bordado de meia noite, meio dia que transcorre enquanto escrevo.
Penso neles, em mim, em você, na humanidade, no Cazuza, no Chico Buarque que entrou na play list; na vó que retomou seu crochê; no sonho com os cães fofinhos; no quanto eu amo meu estilo de vida, ainda que alguns dos meus desejos ainda não estejam presentes; na tempestade que cessou; em tomar mais um café, mas o excesso traz um gosto de fígado à língua, então não; nessa explosão de pensamentos, desejos e ações de que a vida é feita.
Como em meia noite, meio dia, tantos pensamentos, desejos e ações pipocam pelo mundo todo e mesmo aqui, quanta coisa aconteceu enquanto eu escrevia e continua acontecendo enquanto eu digito o nosso ponto final.


Nina Rocha
06/03/2015